Novembro de poucas cores
Novembro de poucas cores
Por Lucilene Machado
Novembro voltou sem nenhuma palavra. Protagonista no aro do tempo, espia os meus medos com desdém. Não uso mochilas, nem guarda-chuvas. Minha agenda se transformou num caderninho de rabiscos que indicam deslocamentos virtuais. Ganho o pão aqui de casa. Também é daqui que afronto a ignorância. Desde que estou emparedada nesta casa que os confrontos se dão pelo lado de dentro.
Traço mapas imaginários no espaço cibernético que podem ser seguidos com o pensamento. Sou o giz no quadro negro de um olhar dissecado, uma experiência quase espiritual. É como contemplar Deus, ou Deus me contemplar, mas sem nenhum milagre.
Os milagres não abarcam as mulheres. Temos que ir à luta, desarmadas. Uma guerra fria que não cessa, nem em tempo de pandemia. Morremos todos os dias, todas as horas pelos mesmos motivos: a perversidade dos homens.
O Deus que nos ensinaram é masculino e vingativo. Atribuiu liderança aos homens e a nós a submissão. Por que um Deus nos quer cativas de homens perversos? Culpa nossa, a sedução feminina os induz ao pecado.
Veio Jesus para desfazer a tirania, mas os representantes das igrejas o mataram. As proposições de Cristo? São ignoradas pelas religiões. Ficamos encarceradas com ou sem os mandamentos. A carne sobrecarregada de desejos não cabe no evangelho. Mulher não pode!
O que fazer com o corpo encharcado de vontades? Voltemos ao novembro que é uma ferida seca desertificando a memória. Esquecemos os significados de palavras mágicas como serendipia. Aprendemos a querer menos, a passar por todas as estações à meia luz.
Às vezes tenho a sensação de que voltamos a estações sobremaneira antigas. Fazemos concessões para abrir espaços na política, batemos nas portas, pedimos clemências para outras mulheres, mas somos ignoradas. Nosso futuro é análogo às flutuações dos mercados. Novembro espia os meus medos projetados nas sombras da minha sede. Amanhã será um novo normal para a humanidade, e para nós como será?
Eu queria palavras para escrever um poema para as mulheres, que não fossem tristes. Escrever um POEMA é sempre estar escrevendo o poema dentro de outro poema. O poema é fértil como nós. Freud sinalizou a nosso favor. A woman, une femme, a mulher. Não podemos ceder à depressão pós-coito, ou post-coitus.
Não vou aqui mastigar idiomas alheios para falar de decepções, tudo que é “post” me incomoda um pouco, me exige um recomeço, se transforma num espaço para luta, que por acaso se deu neste novembro restritivo. Mas aplaudo as mulheres que estão correndo todos os riscos para mudar o nosso futuro e aguardo a post-pandemia para sair de casa e percorrer caminhos reais com mochilas, guarda-chuvas e coragem para enfrentar esse medo de ser mulher.
Lucilene Machado é professora da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS).
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